segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Comunicação

A gente tem poucas certezas na vida. Uma delas sabemos bem qual é: a nossa finitude e a finitude de todos nós. Eu, além dessa certeza, tenho outra: sou uma profissional de comunicação. Sempre fui. Era daquelas crianças que escreviam a redação que a professora ia ler na sala depois como exemplo de bom texto. Foi assim a vida toda e a vida toda a escrita me salvou da minha inabilidade social. De certa forma, sempre vivi da comunicação, seja como estudante de filosofia, como repórter/redatora de jornal, como assessora de imprensa ou como produtora de conteúdo para uma grande corporação. Só sei fazer isso da vida. Mesmo que eventualmente eu venha a não garantir mais meu sustento como profissional de comunicação, posso dizer sem medo que continuarei sendo profissa nisso.

E também acho que só sei lidar comigo mesma através de palavras. Sem elas algo não é elaborado, não se estrutura e até os sentimentos ficam confusos. Por isso decidi escrever este texto hoje. Venho pensando nele há vários dias, desde que o fato que o gerou aconteceu. Não escrevi antes (e principalmente não o publiquei antes) porque fiquei com medo de, ao fazê-lo, banalizar os acontecimentos e eventualmente machucar as pessoas que estão compartilhando comigo desse sofrimento. Espero que não aconteça, que se entenda que jamais faria qualquer tipo de showzinho com algo desse naipe, que não é vontade de aparecer nem de me vitimizar nem de nada. É apenas uma necessidade. Uma necessidade de alguém que sempre viveu das palavras.

Bom, o fato gerador foi a morte da minha mãe. Dia 6 de agosto de 2014. Levada por um infarto, após uns 3 meses de angústias, esperanças e desesperanças. No velório dela alguém me disse o seguinte: "Agora começa uma nova fase da sua vida, uma fase sem ela". E isso caiu na minha cabeça bem pior que o tal balde de gelo do desafio do balde de gelo. Foi assim que eu descobri o significado de "para sempre". "Para sempre" ela não existe mais. Para sempre não.

No momento em que me disseram isso, comecei a olhar em volta. Quase todo mundo que estava ali já havia passado por esse tipo de perda: pai, mãe, irmãos, sobrinhos, filhos. Minha própria mãe já havia perdido seus pais e dois irmãos. Meu marido já havia perdido a mãe. Todo mundo. E como é que se vive com isso? "O tempo não cura, mas ameniza", me disseram. Aprende-se a conviver. Racionalmente imagino que sim, afinal estavam todos ali vivendo suas vidas. Então estou aqui, rindo das piadas alheias, fazendo minhas próprias piadas, levantando de manhã, tomando meu banho, pagando contas, cuidando para que a filha durma na hora certa, tentando não exibir o pior semblante do mundo o tempo todo.

Mas aí você percebe que o micro é muito mais difícil de lidar do que o macro. Você tinha um pacote telefônico interurbano mais barato para falar com ela à vontade. Cancela o pacote. Logo depois recebe uma conta R$ 50 mais barata do que o normal, porque não tem mais o bendito pacote. Sente o amargor na boca. A máquina de lavar dela tinha mais de 20 anos, você já tinha decidido dar uma nova de presente e acabar com o tormento de chamar o técnico cada vez que ela quebrava. Passa em frente à Casas Bahia e vê a máquina que ia dar de presente para ela. Sente um soco no estômago. Vai viajar no fim de semana. Toma uma friagem e fica com dor de ouvido, a mesma dor de ouvido que te acompanha desde criancinha. Instintivamente esquenta com a boca um pedaço de pano, como ela fazia para aliviar sua dor (by the way, não adianta nada, mas o que importa, né?).

Arrumando as coisas dela, encontrei um texto datado de 24 de outubro de 2010, dia do aniversário da minha avó Helena, mãe dela, que morreu em 1982. Ela relatava um sonho que tinha tido com a mãe. Ela jovem, segurando um bebê, tentando fazer ele dormir e a mãe ajudando de alguma forma. O tempo ameniza, mas não cura nem faz esquecer. Ainda bem, penso eu. Ela dizia que eu parecia muito com a mãe dela. Que sou bravinha, que nem a mãe dela e que, quando não gosto de alguma coisa ou de alguém, faço careta.

Da minha mãe herdei quase tudo geneticamente, sou cópia fiel (para o bem e para o mal). Da personalidade herdei certamente o senso de humor. Nos últimos dias, na UTI, ela contou pra todo mundo que ali tinha a maior concentração de médicos bonitos do país. Eu poderia perfeitamente ter feito esse comentário. Aproveitou para dar uma paquerada nos médicos.

Não herdei, certamente, a empatia que todo mundo sentia por ela. Ali, doentinha, ela dava conselhos para uma enfermeira que não conseguia arrumar namorado. Sempre pragmática nesse aspecto, falou pra ela se declarar e, caso não resolvesse, que virasse a página e procurasse outro. Virou a queridinha do povo da UTI. Mas também não era boba: dava bronca em quem não tinha tato para lidar com os pacientes. No velório o que mais ouvi foi o quanto era boa de papo. É muito para alguém que, no fundo, era totalmente antissocial e mantinha uma vida bem reservada.

Agora me pego nesse dilema do "acabou" e do "não acabou". Acabou porque ela se foi. Não vai mais esquentar o paninho para a minha dor de ouvido, não vai ver minha filha crescer como ela mesma disse que queria, não vai mais falar que, no fundo, somos todos árabes, como ela acreditava, não vai mais fazer feijão com paio, cuscuz ou doce de abóbora, suas três parcas mas famosas habilidades culinárias. Mas a genética e a criação ficam em nós, as três filhas e dois netos que ela amava mais que tudo. A gente continua acreditando no poder curativo da hipoglós, do própolis, mantém esse olhar crítico que ela tinha sobre o mundo (por vezes crítico demais), perpetua esse humor ácido e, sobretudo, continua, como ela, acreditando que a vida vale a pena.

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