quinta-feira, 21 de abril de 2011

Sem luxo no lixo

Pois bem, casa ajeitada e é hora de tocar a vida adiante. E foi assim que comecei a experimentar, pela terceira vez na vida, o preconceito.

A primeira vez que experimentei o preconceito começou aos 4 anos. Meus pais, classe média-baixa, mais para baixa do que para média, me colocaram para estudar num colégio burga.

Descobri, então, a importância do viaduto. Na minha cidade, quem morava para lá do viaduto estava dentro do clubinho. Quem morava para cá do viaduto estava totalmente eliminado. Nada de ser chamado para festinhas, tardes na casa dos amiguinhos regadas a pipoca, bolinhos, pães de queijo e refrigerante. Pior do que qualquer big brother da vida. Nem preciso dizer em qual grupo me encaixava.

Tempos depois, descobri o segundo preconceito: o de ser gordo. Gordo tb não é chamado para nada e não se espera que um gordo se arrume, use uma roupa descolada, maquiagem, acessórios, nada disso. O gordo popular é o gordo engraçado. Então, como na época não sabia ser muito engraçada, emagreci. Depois, quando engordei de novo, aprendi a ser engraçada, porque, afinal de contas, sobreviver é preciso.

Já adulta, namorei dois homens negros (consecutivamente, não simultaneamente, é bom deixar claro). Eles me falavam sobre o preconceito contra o negro, mas eu achava difícil de perceber, o que mostra que só a vítima do preconceito consegue enxergar isso com clareza. O mais irônico é que o segundo namorado me deu um gigantesco pé na bunda justamente porque eu tinha engordado, o que mostra, por sua vez, que não é porque se é vítima de um preconceito que se está livre de praticá-lo contra os demais.

Então, aos 33 anos, revivi o alvo do preconceito da minha infância: o endereço. A classe que eu conheço (melhor do que gostaria, diga-se de passagem, sem trocadilho) que manifesta isso com menos pudor são os taxistas. O cara pode morar na periferia da perifeira, mas, quando vem me trazer em casa, jamais se furta de dizer que aqui é muito pior do que o buraco em que ele mora. Se for um taxista com ponto em lugar chique, então, vejo na cara do sujeito a hesitação antes de me trazer em casa.

Hoje o taxista, velhinho, toscão, ouvindo Guilherme Arantes no rádio, dirigindo como o diabo (supondo que o diabo dirige mal), disse com todas as letras: "Eu moro em São Miguel Paulista, é longe pra burro, mas isso aqui é mil vezes pior". E fez aquela cara. Aquela cara. "Pois é", disse eu, que é a resposta-padrão que adotei para essa situação.

O centrão parece um cenário de filme apocalíptico: você anda pelas ruas e vê ruínas, lixo e zumbis. O Ridley Scott não faria melhor. Mas só aqui você pode encontrar cenas inusitadas: os chineses donos da granja que jogam bola (dentro da granja) com o filho de 8 anos, a velhinha de 90 anos que é dona da locadora de filmes pornôs (e limpa os DVDs pornôs diariamente, sistematicamente e com afinco), os latinos que passam o dia inteiro ouvindo o que aos meus ouvidos paulistanos parece ser sempre a mesma música da flautinha.

Ao longo do tempo, percebi que existem, na verdade, ao menos duas grandes classes de problema. Aquela à qual todo mundo se refere quando trata das mazelas do lugar são os noias. Esse é um problema de resolução tão difícil que eu nem me atrevo a conjecturar sobre quais seriam as possíveis medidas para melhorar a situação. Eles não parecem mais gente, você olha no olho deles e não parece encontrar ali nenhum resquício daquilo que a humanidade vem tentando construir há séculos.

Mas, para nós, seres humanos medianos que habitamos essas paragens, há um segundo problema, tão grave quanto o outro, mas que é de muito mais fácil resolução e que requer apenas vontade política para ser solucionado: o lixo. O centro é um grande lixão. De manhã o lixo já está todo revirado pelos noias e vai sendo mais e mais revirado ao longo do dia, até que tudo esteja tomado por aquela sujeira e pelo odor característico que o acompanha.

Então, a minha pergunta é: será que antes de pensar em demolir 20 quadras, expulsar todo mundo que mora e trabalha aqui, construir centros culturais, entregar o terreno às grandes incorporadoras, enfiar os noias em Alcatraz, não dava para fazer uma coleta de lixo decente e eficaz?

Hoje não deu para fazer um post engraçadinho. Peço desculpas se alguém ler e achar que sou uma militante mala, mas não pude deixar de colocar isso em algum espaço público. Se acharem que esse post é um lixo, chamem a prefeitura para recolher. Vamos ver se alguém aparece.